segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Do gueto para o campo de concentração

A volta das freiras feias

Luiz Felipe Pondé (Folha de S.Paulo 24/08/2009)

HÁ DIAS escrevi no caderno Cotidiano desta Folha um artigo cujo título era "Freiras Feias sem Deus" sobre a nova lei antifumo. Um mar de e-mails.

Volto ao tema hoje para aprofundar duas questões que julgo mais importantes neste debate. Uma delas se refere à imagem de uma freira feia sem Deus como metáfora dos fascistas amantes da nova lei. Por que freira, por que feia, por que sem Deus?

Outra questão, mais "séria", referia-se ao uso do termo "fascismo" para uma lei legitimamente votada num Estado democrático de direito. Como aplicar um termo advindo do universo totalitário ao campo da vida política democrática?

Eu sei, caro leitor: quem é afinado com o debate da filosofia política contemporânea sabe que a suposição de que a democracia seja imune ao fascismo não passa de mera ignorância.

A democracia atual, com suas intenções de corrigir o comportamento do cidadão (elevando-o à categoria de agente moral), pelo contrário, bebe muito na inspiração fascista.

A referência da "freira" aqui é simbólica, é claro. "Freira" remete à figura da mulher religiosa maníaca pelo controle das paixões e dos desejos, uma espécie de fiscal da virtude e do pecado. Ela ama castigar o pecador enquanto se olha no espelho e vê sua face como sendo a do espírito puríssimo. Não muito distante do não fumante militante que, ainda que não confesse, vê o fumante como um lixo da humanidade, alguém que tem prazer em se melar com a morte.

"Feia" é a figura da deformação interna da alma advinda desta fiscalização orgulhosa. Goza a noite em seu quartinho abafado, com a ideia de que, finalmente, aqueles que ela detesta serão humilhados. Como ratos que se escondem no escuro pra respirar seu ar doente.

"Sem Deus" é uma referência mais sofisticada. A relação entre a luta contra o pecado e o vício, por um lado, e Deus, por outro, implica a noção de piedade. Deus é uma ideia que traz em si um abismo no qual miséria humana e misericórdia divina se encontram.

Uma freira feia sem Deus é terrível porque a única coisa que ela deseja é a violência legal como controle total do pecador, sem amor algum pelo infeliz. Ao pecador resta apenas a miséria e a vergonha.

Já o fascismo é, no fundo, uma religião civil e não um tipo específico de política ou governo. Manifesta-se como um governo cuja autoimagem é a de um agente moral na sociedade. Agente este movido pela fé em gerar melhores cidadãos, por meio do constrangimento legal e científico dos comportamentos.

Na democracia, o fascismo ainda é mais perigoso porque tende a ser invisível. Esta invisibilidade nasce da ilusão de que a legitimidade pelo voto inviabiliza o motor purificador do fascismo. Pelo contrário, a própria ideia de "maioria" ou de "vontade do povo" trai a vocação fascista.

O fator saúde, seja pessoal, seja do planeta, seja da sociedade, sempre foi uma paixão fascista -isto já é largamente conhecido. A própria noção de progresso como saúde social canta hinos fascistas.

Perguntará o leitor: mas se for assim, não tem solução! Sim, tem, basta o governo ser mais cético com seus impulsos de purificação do mundo e se ater a sua condição de "síndico" da sociedade e não de reformador. A ideia de uma sociedade "saudável" já é fascista. O estado moderno tem em seu DNA a vocação ao fascismo.

Outro veneno é a associação com a ciência. Aqui tocamos o fundo do poço. Só idiotas, ou fascistas confessos, mesmo que mentirosos, creem em verdades científicas como parceiros éticos.

A rejeição de comportamentos construída via argumento científico tem a seu favor do ponto de vista do fascista a segurança de que ela é inquestionável. E se a "ciência" tivesse provado que os judeus eram mesmo seres inferiores e eticamente poluidores do mundo, seria correto exterminá-los? Ou pelo menos confiná-los?

Imagine, caro leitor, se em alguns anos "a ciência descobrir" que fumantes e ex-fumantes emitem partículas cancerígenas pela respiração. Claro que esse "a ciência descobrir" pode significar uns quatro ou cinco trabalhos financiados por lobbies contra os fumantes. Como proceder?

Arrisco dizer que nossas freiras feias sem Deus proporiam campos de concentração para os fumantes. Assim garantiríamos um ar sempre puro. A inspiração fascista da modernidade é resultado da secularização do cristianismo e seu desejo de perfeição. Pena que só sobraram as freiras feias e sem Deus.

Gueto de Varsóvia

Com os judeus, começou assim. Primeiro, foram despidos de seus direitos individuais e civis, proibidos de exercer a profissão, limitados em seu direito de ir e vir, expulsos de universidades, agredidos, forçados a entregar ou vender empresas e propriedades... Depois, todo mundo sabe o que aconteceu. Estamos indo para o mesmo caminho?

Em viagem à Polônia, visitei o que sobrou do abominável “Gueto de Varsóvia”. Tristes escombros!

Pelo direito de fumar


Sou fumante, e fumante inveterada. Há décadas. Se quisesse, abandonaria o cigarro. Mas não quero; pelo menos não por enquanto. Adoro fumar! O cigarro me proporciona um prazer imenso. Para mim, fumar é mais do que um mero vício; é opção!

Naturalmente, conheço os riscos associados ao cigarro – que, aliás, não são muito maiores que os riscos associados à má alimentação, ao estresse, ao trânsito, à poluição, à violência urbana... Tudo isso mata, tanto quanto o cigarro. Ou talvez até mais. Não disponho de estatísticas no momento (vou levantá-las), mas algo me leva a crer que, em São Paulo, onde vivo, o trânsito e a violência urbana matam mais do que o cigarro. E a poluição ambiental – seja na capital, seja no interior (que o digam os moradores das regiões onde se planta cana de açúcar) – pode provocar tantos problemas respiratórios como o cigarro. Prova disso é que os pronto-socorros da capital e do interior vivem abarrotados de crianças com problemas respiratórios (e note-se que nem todas têm pais fumantes ou sequer convivem com fumantes).

Voltando à questão inicial, não só conheço como assumo os riscos associados ao cigarro. Sou maior, vacinada e dona do meu próprio nariz. Mas sou uma pessoa consciente e, como tal, não quero impor meu cigarro (e a fumaça que ele produz) a ninguém. Respeito o direito de quem não fuma – desde que respeitem o meu direito de fumar. Tanto que achei fantástico, anos atrás, quando instituíram áreas de fumantes e não fumantes em bares e restaurantes. Pensei: “Pronto, agora vou poder fumar tranqüila sem incomodar (e ser incomodada por) ninguém”. Desde então, me acostumei a esperar (horas até) por uma mesa na sempre concorrida área de fumantes. Para poder comer, beber e fumar em paz. Nem sempre conseguia, é verdade. Invariavelmente me deparava com algum não fumante xiita na área de fumantes torcendo o nariz para a fumaça do meu cigarro (não fumante xiita é uma “espécie” tão estressada que não consegue – ou conseguia – esperar por uma mesa na área reservada a ele, e ia se sentar junto aos fumantes).

Mas tudo ia bem até essa versão paulista do “Grande Irmão” de George Orwell declarar guerra ao fumo (e ao fumante), com uma lei de natureza absolutamente totalitária, que invade a privacidade do cidadão, passa por cima de uma lei federal (que determina a separação de ambientes entre fumantes e não fumantes e autoriza a existência de fumódromos) e ainda estimula a delação!

Objeto da fúria sanitarista (higienista) e persecutória desse hipocondríaco com cara de doente (ou, como escreveu José Simão, numa tirada fantástica, com cara de quem fuma crack escondido no banheiro da rodoviária... rs) e de seus seguidores, o fumante tornou-se um pária. Hoje, só podemos fumar em casa ou na rua. A continuar assim, em breve não nos permitirão fumar mais nem nas ruas!

Hoje é o cigarro; amanhã, a carne de porco; e depois, quem sabe? Talvez a própria liberdade de expressão... Já vimos esse filme antes!